Normalmente gostamos muito mais do alegre, do brinquedo, do feliz, do leve, do visto à distância. Rir é ver à distância. Rir é flagrar o susto do outro, com o qual, naquele instante, não queremos nenhum laço afetivo. Queremos apenas rir dele. Rir é também uma forma de indiferença para consigo ou com os outros. Quanto menor o compromisso afetivo com o estabano alheio, mais livres rimos. O desajeitado súbito é sempre uma graça.
Também os pecados e os defeitos são engraçados, por isso mesmo sempre foram alvo de punição. Sempre receberam um recado, ao mesmo tempo em que são o bode expiatório, e se fazem o próprio recado geral, comunitário. O avarento recebe o recado pelo riso dos outros e também é recado, na medida em que é cômico, no seu obsessivo amealhar das ninharias.
É preciso distância para melhor ver o cômico. Se muito nos aproximamos, se muito somos empáticos, se muito nos sensibilizamos, mais entonação densa as coisas recebem. Mais nos comovemos e levamos a sério; menos somos capazes de ler o absurdo desconcertante implícito no viver.
Perversamente também criamos formas jocosas para punir as diferenças, implicar com os mais fracos, pilhar as cores que não desejamos, desestabilizar os gestos deficientes, excluir os que não aceitamos, massacrar as imperfeições alheias. As crianças trazem esse DNA brutal muito ativo. Se massacram logo cedo. Banem-se umas das outras. São cirúrgicas para as limitações do outro.
Inteligentemente também criamos vias de enxovalhamento de nós mesmos. Uma grande arte é não nos levarmos a sério. Sermos nós os objetos das comédias que criamos. Sabidamente podemos aprender a analisar nossos defeitos e pô-los em praça pública, como antenas para a liberação dos outros. Eis o amor e graça despertos pelo palhaço!
Também, como sugere Bergson, a comicidade pode gerar comoção, mas para tal é preciso que o riso caia “ sobre uma superfície d’alma serena e tranquila”.
Já nos contos, o riso pode adquirir feições mais netunianas, brumárias, profundas. Mais graves. Pois eis uma das paisagens mais dúbias do riso, mais cruéis, mais inseguras: os dentes. Com ou sem eles (os dentes), o riso demonstra os aspectos canibal, voraz, agressivo, irreverente, lascivo e beligerante da boca.
Talvez esse seja o fenômeno morfológico do riso. Se partimos de sua fisiologia e forma, não poderemos escapar das bocas e dos dentes que ali existem ou um dia existiram, ou que ainda hão de existir. Assim chegamos num riso mais anatômico, mais indiferente ainda. Portanto chegamos onde queremos, o riso nos contos de fadas e seu semblante de máscara: a feição nada simpática da cura.
Os contos de fadas jamais poderão ser bonzinhos, leves e bonitinhos. Quando são forçados em sua natureza selvagem à brandura, perdem a força, fogem para as profundezas, não mais se comunicam, desaparecem em silêncio abissal. Eles são estruturas isentas, impassíveis, desapegadas. Não vieram agradar.
Portanto, a feição do riso nesses contos, se manifesta mais para abalar que para afeiçoar e descontrair. O riso é a boca, são os dentes e sons estranhos que dessa contração adrenalínica emerge. No geral, discretamente, a comicidade nos contos é uma porta para um caminho longo a atravessar. A personagem alegre, incauta, que só busca as benesses, se depara com um senão, um riso embutido, de aspecto às vezes animalesco, às vezes irônico, às vezes vazio de sanidade, mostrando a verdadeira e nada amistosa face da travessia.
O riso da máscara. A feição misteriosa do inconsciente. O riso da natureza que testa seus iniciantes, os candidatos à busca. Talvez esse riso seja a própria liberdade que nos olha da margem além do rio, com piedade, por ainda tão medonhamente estarmos enlinhados, embaraçados, em quase nada. O riso bem distante dos que vêem a comicidade do baile bem dançando, porém sem música, que nos faz ridículos.
O riso da máscara, dos contos e suas distâncias, é porta convidativa para aquelas crianças que os acompanham, que os ouvem do início ao fim, que aguardam o desenrolar do drama. Pois, o riso nos contos, só conclui seu sentido de cutucão, de trovão, quando a jornada se completa. Aí se revelam as imagens que demolem a rigidez autocentrada. Que apontam para a entrega exigida na jornada. Que subvertem a pretensiosa organização do mundo pela qual sempre trabalhamos arduamente.
A quem, na criança, o riso dos contos mira?
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