Uma das figuras que muito desperta fantástica nos contos tradicionais é o gigante. De qual recanto da matéria prima ficcional humana nasce a ideia do agigantamento? Será da mesma corrente anímica de onde nascem as ideias de miniaturização? As histórias de Gulliver, que não são propriamente contos tradicionais, escritas pelo irlandês Jonathan Swift, brincam com essa ideia de miniaturização e agigantamento num jogo de expansão e encolhimento. Talvez o mesmo jogo que conduz Alice ao país das maravilhas.
Quando esses movimentos de encolhimento e expansão aparecem, ao mesmo tempo, na narrativa, temos o fenômeno da plasticidade imaginária encarnando suas forças diante de nós. A interiorização e a extroversão criando tensão e trânsito de intensa energia anímica, plasmando modos de aproximação e distanciamento, sugerindo formas de abordagem, modos relacionais entre forma e matéria, plástica pura e finalidade estética. Esses jogos normalmente mergulham as crianças para o íntimo das coisas ou para uma supervisão, de fora, do alto. Levam-nas para o dentro mais dentro, onde se movem dinamismos, ou para o fora onde se pode apreciar, não propriamente a pulsação das coisas, mas sua arquitetura final, suas modelagens, seu shape.
Já quando o agigantamento predomina nos contos, quando a narrativa privilegia sua contundência, aí talvez tenhamos uma configuração de energia que privilegie a própria imagem do gigante. Não mais só um agigantamento momentâneo, que acontece de acordo com a perspectiva do personagem, ou por uma magia temporária, mas aqui, propriamente, surge o gigante.
Quando eles surgem, surge com eles a maravilhosa memória das forças desregradas, ingênuas, sensíveis e emotivas, broncas, abobalhadas, fáceis de logro e dadas ao perigo de suas naturezas descomunais. Normalmente quer-se domar os gigantes nas mitologias e contos. Eles moram no fundo dos vulcões, geram trovoadas quando brincam, ou quando lavam suas roupas inundam o país de nevoeiros, ou compõem o séquito destruidor de algum deus maldoso ou rei impiedoso. Também são bíblicos e fazem parte de gerações de destruidores. São enganados por santos para construírem catedrais ou por pessoas espertas que usam suas forças. São frios e gélidos morando nas neves como o pé grande (abominável homem das neves) das américas, ou abrasivos e vulcânicos como os titãs da mitologia grega.
As crianças tratam desse enorme dinamismo atabalhoado com vivo interesse. Quando trabalham por uns dias com as imagens dos gigantes podem sentir mais de perto suas forças emocionais, seus destemperos, seus estados desastrados, suas reações grosseiras. São conduzidas para a percepção da guia. Quem conduz? Quem decide? São acionadas a contactar uma imaginação que se move por entre as lições da brutalidade e da medida, da frialdade e da sensibilidade, do autocentramento e do senso coletivo.
O gigante convida a criança a sentir movimentos tectônicos em si própria. Ele é uma espécie de bafo de forças que se movem mais ao fundo. Traz avisos de apaziguamento ou de movimentos desestabilizantes. Aciona a condução de grande força para algo construtivo, canaliza a energia desregrada num propósito, ajuda a concluir uma obra, a finalizar um processo. O gigante é um ativador dos sensos. Por seu modo incauto traz uma filosofia da presença, do desejo sistêmico, das relações que só criam laços se complementadas.
Nos contos existem os gigantes que aceitam participar das tarefas. Eles são sinais de concentração de força, de um destino a ser dado para aquela enorme quantidade de energia. Sinal esse de grande capacidade de realização, realização heroica, realização divinal que se dá no humano, obra prima, capacidade de alcançar as mais cristalinas percepções de si e realizar transformações profundas.
Gigante, portanto, é maravilhosa imagem de matéria bruta em trabalho, esculturação de si, inspiração de lida feliz, poder realizador. Mas que necessita ser cuidado, trazido para perto, visto, afagado e, até mesmo se necessário, ser logrado, em prol de apaziguamento. Mas jamais pode ser banido, reprimido, negado, arrancado de seu espaço. Pois gigante revoltoso é vulcão agonizante. Se erupcionar é destrutivo, disruptivo, adoecente, esfarcelante.
Os contos, em suas cintilâncias infindáveis de imagens, poetificam nossos desencontros, dramas, torções, dores. O sofrimento vivido no amadurecimento, no crescimento, na necessária expansão da personalidade, é generosamente codificado pela alma, em imagens de encantamento que facilitam à criança sua travessia, o encontro amoroso com sua própria sina.
Vejam esse Conto de Rosane Pamplona contado por Manoela Pamplona e o grupo Era Uma (link para o YouTube):
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