Ao meu admirável amigo Nando Arruda, um filho da noite
Havia uma história numa pequena cidade onde vivi, uma cidade no Maranhão, fincada numa chapada, com arredores de rios muito claros. Uma história que circulava entre as crianças. A LOUCA que gostava de caju. Diziam meus companheiros de infância que ela ficou louca por ter matado seu próprio filho, recém-nascido, ao rolar por cima dele enquanto dormia.
Era uma história que aparecia como uma afirmação grave e brutal entre nossas conversas de meninas e meninos. Para a maioria era uma história que não os ameaçava diretamente, além do devaneio que o causo abria. Mas para mim, que na época tinha sete anos de idade, era um sonho com um grau maior de terror e fascínio. Entrava na esfera do INQUIETANTE.
Nas temporadas de caju meu medo aumentava. Temporada de caju na minha memória de infância - além de tantas maravilhas como a caça das Pipiras (passarinhos comedores da fruta), a confecção das baladeiras, a montagem das arapucas com talo de buriti - gravou em mim um alerta, uma vigília para o espectral, um pressentimento de susto.
Dois eram os motivos para esse alerta. Um que nossa casa tinha mais de dez espécies de cajueiros no quintal, todas árvores velhas e, portanto, muito férteis. Ficavam carregadas nas temporadas. Saboreávamos muitos tons de doçura, acidez e travo.
O outro e aterrorizante motivo que se ligava diretamente a esse, era que a DOIDA DO CAJU era vizinha próxima. Morava um terreno baldio e duas casas depois da minha. Literalmente, o terror morava ao lado e gostava muito de caju.
Muitas, tantas, inúmeras vezes eu entrava correndo pela sala da casa, vindo das brincadeiras de rua e, de súbito, dava com aquela mulher ainda jovem, lívida e esguia, com cabelos grisalhos inteiramente assanhados, vestida num chambre esquálido, sentada na sala com uma pequena tigela de loiça, cheia de caju, servida gentilmente por minha mãe. O impacto era paralisante. Causava terror, raiva e disritmia ao mesmo tempo.
Entrava pela casa adentro bravo reclamando com minha mãe por deixar “aquela” fantasma se esgueirar na nossa casa. Mas depois que a raiva e o medo amainavam, voltava eu em silêncio total para espiar a mulher. Nunca vi alguém comer caju com as duas mãos de forma tão apetitosa e elegante como ela! Aprendi a comer caju, de verdade, saboreando-o, com essa doida.
O halo sonhador de meus sete anos de idade, não me deixava ver na doida uma mulher real. Aquela pessoa - não sei seu nome até hoje - era um autêntico ser espectral infuso numa bruma de morte. Era uma criatura com a pele das lagartixas albinas que eu costumava contemplar quando andavam nas paredes do meu quarto. Via eu, de algum modo (talvez o modo imaginador), o emaranhado fluxo de veias por dentro de seu rosto e braços PÁLIDO-TRANSPARENTES irrigando aquele sistema inumano.
A história da morte de seu bebê a acompanhava por onde eu a via. Era inescapável aquela presença não causar em mim uma tensão interna. Um mistério que me enredava na noite dos pensamentos de criança. Era a autêntica natureza do FASCINIUM.
É justamente do fascinium na infância que novamente quero falar. Mas agora, pela via do INQUIETANTE.
Freud tem um texto de 1919 com o título, ‘O Inquietante’. Não levando em conta as encalacrantes causalidades freudianas advindas da repressão e do desejo; admirando seu brilhante esforço literário em identificar um núcleo do inquietante dentro da ideia da angústia; desconsiderando sua disjunção racionalista em sempre DESCONFIAR DA IMAGEM, há nesse texto uma alegria investigativa muito simples, um interessantíssimo levantamento etimológico da palavra inquietante em diversos idiomas.
Esse tear de etmos construído por Freud é maravilhoso, pois cria uma espécie de correnteza natural no texto, conduzindo a canoa de nossa reflexão para pequenos e novos atracadouros de sentidos. E o melhor, nem sempre os mesmos sentidos encontrados por Freud.
Uma das tramas centrais dessa correnteza etimológica mostra o inquietante como contraditório ao ÍNTIMO.
Isso nos basta, por hoje, dessa colheita na fértil narrativa freudiana.
No entanto, sigo agora com um leitor de Freud, que também reler Jung. Um leitor livre, confiante na liberdade criadora do investigador das imagens, empenhado em ativar símbolos e sentidos. James Hilmann. Ele traz da mitologia significativa ideia que nos ajudará a voltar para a Doida do cajú: OS FILHOS DA NOITE.
Com os filhos da noite quero andar pelo inquietante na infância, nesse começo da vida.
Quem são os filhos da noite? Comecemos pela noite, depois vejamos seus filhos.
Noite. Hora da descida. A anunciação das trevas. Preparação para aquietar. A hora em que os bebês se agitam e as crianças maiores se destrambelham em brincadeiras agitadas pela casa. Momento de entregar a alma. A hora das histórias de ninar, das músicas de acalantar, a hora de pedir guarda ao anjo para um sono tranquilo e sonhos benéficos (já que existem os maléficos). Já que existe o desconhecido, o sem controle, o não real, o assombroso. O inquietante. O mundo subterrâneo de Hades.
As coisas, melhor manifestam seu propósito, sua essência, quando levadas à noite, ou gestadas na noite, para que daí venham ao dia. O segredo, a invisibilidade, a oclusão, são moradas dos estados de gestação. Para que depois se possam dar à luz.
Essa noite tem seus filhos. Hipnos (senhor do sonho, que decide sobre o sono dos homens) e Tânatos (morte) são irmãos gêmeos. James Hillman nos diz que, de acordo com Hesíodo em sua Teogonia, a noite produziu uma grande geração de filhos, Hipnos e Tânatos são parte deles. Mas também a Velhice, a Inveja, a Discórdia, a Perdição, a Lamentação, o Destino a Ilusão são outras de suas crias.
Uma geração, em última instância, mensageira do transitório, que deflagra, sem possibilidades de fugas, a substância de finitude.
Por isso mesmo despertam para o mistério. Inquietam a alma. Arrancam-na da preguiça e da paralisia sínica da indiferença. Açoitam o Ser.
No mundo, nas cidades, nos bairros onde moram as crianças, nas casas e os dramas familiares, moram muitos filhos da noite. Vivem muitas vezes como invisíveis. São obscuros. Moram nos quartinhos dos fundos. Assustam as crianças. São tratados mais como entes do que como pessoas. Ninguém os provoca. Eles dizem o que querem. Comem como querem. Se vestem como querem. Acreditam no que querem.
A doida do caju era uma filha da noite de nossas infâncias. A própria aura da morte. Quase uma sombra. Uma Perséfone, que na primavera dos cajus começava a se mover para sair das garras de Hades. E subia ao dia, à luz de meu quintal de pipiras, baladeiras, arapucas e cajus docinhos. Subia pálida. Toda ainda noturna. Toda ainda enredada em seu manto hibernal, assanhando minha intimidade confiada. Ameaçando as minúcias bem protegidas de minha infância.
Uma pedagogia viva do inquietante. Leva a criança ao risco. Mostra a beira do abissal. Uma porta para o mistério. Um ensejo despido e revelatório de humanidade. Saída da escuridão, aquela mulher, se flagrava na luz. De tal maneira que não se via realidade nela. Era um Hipnos de minha infância. Quando aparecia era a maré de meus terrores, de meu sono. Fremia estados estranhos.
Minha doida do caju, que quase poderia ter sido minha namorada da noite profunda se criança o fosse. Que me levaria para o Hades de mãos dadas. Meu inferno. Uma encantaria viva, uma gravidade de poderosa afeição, empatia, encantação.
O medo inquietante exalava de seu chambre velho de tecido quase roto. Eu não tinha coragem de sentir seu cheiro. Ela nos retirava, de súbito, da segura intimidade familiar, do aconchego da casa, das tranquilidades sonhadas nos quintais, das birras com os outros por um pedaço de matéria. Ela era a realidade onírica pura. O humano apossado de realidade divina, de furor e silêncio.
Doidos são composteiras. Inventores de linguagens. Ganeshas e Exus.
Minha filha mais nova, agora com 03 anos de idade, tem um tio que é da noite, doido. O tio Nando. Outro dia ele calçou seu par de all star ao contrário nos pés. Ela então, que agora se inicia desbravando o mundo das ordens, das coisas e seus lugares, disse para ele: “Tio tá errado o tênis, tá trocado, coloca certo”.
Ele então, já com muitos anos imerso na fenomenologia do mundo bestial de matéria onírica, todo ao contrário, dado à volúpia das ciclicidades, nada linear, respondeu: “Tem que ser assim, assim é o certo, com as pontas para fora, quando anda vai abrindo (gesticulou com as mãos a abertura), abrindo os caminhos”.
A menininha então, também dotada do PODER MÁGICO DA IMAGENS (como o são as crianças), parou e ficou observando com grande interesse a MITOdologia de seu tio da noite. E seguiram, rindo um do outro e imitando o gestual de andar com os sapatos trocados, abrindo os caminhos.
Uma cena de pura humanidade, a menininha na noite de seus 03 anos e o tio na noite profunda de sua existência de já 40 anos. Uma graça do viver as crianças terem perto de si, como amigos, irmãos, parentes, esses filhos da noite. Pessoas assentadas no inquietante. Naturezas acostumadas a pelejar com as desagregações do devir. Forças ígneas que nos levam à faixa mais real da existência. Gente de ordem oracular.
São esses PSICOgogos. Capazes de levar, conduzir a psique (alma) das crianças para o reino que lhes é próprio: a noite inquietante.
Minha filhinha mais pequena tem a sorte de conviver com um tio PISICOgogo amigo dela, que cumpre um papel estruturante e, em muitos modos, oposto ao nosso modo adulto, dos pedagogos.
Vejo aí uma bela amizade, um campo afetivo que se orienta nas coisas do luar.
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