A graça de se ater à coisa mesma, ao ato em si, ao gesto próprio, é que ele não é passível a nada. Ao contrário, ele é um lugar, um ponto, um cosmos ativo em si próprio. Ele é uma inteligência. Não é redutível. Não pode ser apreendido em sua totalidade. O que capturamos da totalidade do fenômeno são apenas fragmentos, instâncias de seu halo que nos alcançam pelo sentimento, ou pela inspiração, ou pela intuição, ou até mesmo (de forma menos provável) pela análise racional.
Quando estabelecemos o diálogo com o fenômeno, com o gesto da criança, é que inicia a redução. Capturamos desse diálogo apenas uma fração. O que já é uma grandeza, um presente, uma rara “intuição do instante” permitir que o fenômeno seja. Mas se vamos muito ávidos, nada capturamos e, na maioria das vezes, apenas emprestamos um halo àquele fenômeno, sem se dar conta de que ele mesmo já não mais se mostra.
Assim, gesto também pode ser algo mais: um antes ou um depois da linguagem. Uma translinguagem. Pode não ser algo a dizer no terreno das relações comunicantes. Pelo menos aquelas conhecidas pelas pesquisas filológicas, linguísticas, aquelas que são levadas em conta pelas análises do discurso. A antropologia, etnobotânica e neurobiologia já se abrem, aos poucos, para uma transcendência comunicante. Por exemplo nos estudos sobre as plantas mestras (Jeremy Narby).
Existem os gestos que se encontram mais no campo da pajelança, da mística, das rachaduras psíquicas mais graves e, como não poderia deixar de ser, na topofilia imaginária das crianças. Nesses campos mórficos há sim um comunicante, mas de natureza anímica espiritual. Trabalham aí gestos que capturam, reagem ou dialogam com inteligências mais ao fundo, no interior da paisagem, no sustento frequêncial das formas, nas canículas mais primitivas da vida.
Por exemplo, uma mãe contava-me o caso de seu filho com autismo que agora, com cinco anos de idade, está iniciando deixar as fraldas. Ela, preocupada, conversava com outra mãe, também com um filho da mesma idade e com autismo. As duas mães eram recém conhecidas e dialogavam por telefone pela primeira vez. Um diálogo intenso de descobertas. No dia seguinte, o filho da segunda mãe, que nunca havia dirigido uma pergunta a seus pais, num repente, perguntou: quem é o menino que você está falando sobre as fraldas?
Duas mães, mergulhadas na busca por seus filhos, acionaram um dínamo. Abriram conjuntamente, sem se dar conta, espaços de expressão para eles que, imediatamente, responderam gestualizando. A resposta das duas crianças que não se conhecem foi acionada de uma camada mais recuada. Uma das crianças fez a sua primeira pergunta na vida, o outro, entrou em nova fase de maturação, de consciência corporal, acordando sua região pélvica, brincando com um vaso sanitário posto na varanda, perdendo o medo e atirando suas fraldas no lixo. Tanto a primeira pergunta da vida, quanto a busca pelos esfíncteres, os dois não são propriamente gestos, mas poderosas virtualidades gestuais, núcleos de vida gestual.
Existem também, aqueles gestos ainda mais diáfanos, que são emprestados do imaginário religioso para as crianças. São gestos representados nas iconografias onde crianças são vistas como criaturas mais próximas do divino. A imagem da escultura abaixo demonstra isso. Representa a passagem de uma criança para outra vida. Uma entrada na morada oculta. A recepção e o acolhimento do mundo divino para com aquele anjo, aquela criança que morreu ainda na “pureza”, num estado de consciência sem mácula. As mãos postas no coração, o olhar diante do tremendum, a feição lívida e renovada após a grave travessia, a tranquilidade de estar sendo guardada por mãos celestiais, a garantia de que nada morre e a consciência é um contínuo. Talvez esse seja o gesto arquetípico da comoção, da pureza transcendental. Mesmo os que não creem em vida após a morte, podem ser abalados diante de tal gesto se pensarem em seus filhos.
Encontramos na criança também os gestos que esboçam o que passou, que recusam o presente e são obstinados em direção à manutenção do tempo mágico. Gestos que são pegadas, guardam o rastro do elo que tem as crianças com seus brinquedos, do vínculo que estabelecem com atmosferas imaginativas. Os pais normalmente não percebem seus filhos mergulhados no mundo muito pequeno de um urso de pelúcia. Comumente os arrancam de seus idílios por alguma necessidade de força maior. Mas o corpo da criança logo se recusa e aponta, todo inteiro, para o sonho em que estava, volta-se, estica-se para capturar seu brinquedo, nega-se a ir sem seu amuleto mágico. Tensiona sua força com a força do adulto. Angula-se para o chão. Frena, por alguns segundos, a urgência das contingências e volta para apanhar seus pequenos tesouros.
Quantas crianças por segundo, em todo o mundo, gesticulam travando, suspendendo, num istmo imaginal, o tempo incessante dos adultos? Se flagrássemos em um único dia do mundo, todos os gestos de crianças suspendendo o tempo de seus pais e mães, em ato de resistência, lutando por seus territórios oníricos, teríamos a mais farta documentação, o mais revolucionário manifesto, a imaculada insurreição, o mais puro argumento para uma poética espaço-temporal. Teríamos matéria suficiente para uma fantástica dos modos de pertencer.
Existem ainda muitos gestos do assentamento. Meus músculos não esquecem de quando vivi, por pelo menos dois anos ininterruptos, dos 07 aos 09 anos de idade, como um cavaleiro, um forasteiro que se resumia a mim mesmo, minhas armas e minha montaria de pau. O resto era o mundo aberto onde, deveria eu, todos os dias, testar minha força invencível. Ah, que vasto era o mundo! O único inimigo invencível, com muros intransponíveis era a escola. Esta era minha kriptonita. Mas quando as aulas acabavam era a hora do almoço. A fome do almoço, ainda hoje, é sempre um prenúncio de grande alegria para mim. Acho que gravei de tal modo na memória, desde menino, que o almoço era a hora do dia em que a kriptonita deixava de drenar minhas forças e eu teria a tarde inteira no meu imenso quintal. Era ele muito vasto, por ser grande e principalmente porque dava para outros tantos enormes quintais vizinhos. Hoje vejo claramente que meu quintal era meu mais admirável amigo.
As montarias imaginárias de quintais e becos, as montarias nos cavalos de pau e nos lombos de jegues, cavalos e até bodes, eram mais verdadeiras e gloriosas quando abríamos os botões das camisas e deixávamos o vento no peito fazer a lição principal. A lição e a busca dos cavaleiros e bandoleiros: percorrer o mundo, ser senhor de si, ir sem volta. Só voltar quando os valores épicos que moram no verbo IR, tivessem esgotado suas possibilidades para aquele dia de brincadeira.
Mesmo nos mais pequenos, o lombo dos pais é sempre agradável ensaio de domínio, gesto de expansão, há sempre fórmula de conquista na imagem cavalo, um poder maior para se estender no território, uma graça e um divertimento em se assenhorear de uma força, de encilhar com as pernas, de encabrestar com as mãos. Cada comando imposto ao cavalo é sempre respondido por um cavalo de força. A criança sente essa resposta no centro de sua governança, no eixo de sua coluna.
Gesto vem de muito longe e nunca se sabe bem para onde vai!
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